segunda-feira, janeiro 09, 2006

King Jackson


Há na obra de Peter Jackson um padrão de evolução muito semelhante à de Spielberg. A começar por, através de um blockbuster que lhe encheu os bolsos, ter conquistado o direito de fazer em cinema tudo o que quer e lhe apetece sem ter de se preocupar com dinheiro ou com agradar a alguém. E depois é o próprio modo de fazer cinema. Vemos um filme seu e a sensação que se tem antes de qualquer outra é a de que o homem se diverte imenso a fazer aquilo, e procura divertir os outros, sem preocupações académicas ou de respeito a qualquer cânone, mas sem qualquer superficialidade. Até na orgia de sangue que é Braindead não há futilidade no meio de toda a inverosimilhança que existe numa praga de canibalismo zombie propagada por contaminação de criptozoológica de ratazanas.
Os seus filmes são consistentes, têm conteúdo sem deixarem de ser lúdicos, mas não são propriamente do tipo de filme de Domingo à tarde, limitados a uma mera função de entertenimento despreocupado. Conseguir isso é, para mim, conseguir a quadratura do círculo.
Vai-se ver o King Kong e pelo preço do bilhete tem-se divertimento à velha maneira de Hollywood e momentos de sublime inspiração, como a relação que se cria entre a Bela e o Monstro, mais aprofundada do que na versão original e que culmina na coreografia do "beau-ti-full": contenção de recursos estilísticos e uma grande capacidade de síntese que está em dizer muito falando pouco.
O filme é rico em pormenores que não escapam à atenção de cinéfilo, incluídos com toda a subtileza.
O realizador Carl Denham, dado a delírios e megalomanias de génio, preocupado com a sua obra acima de tudo o resto, tem traços carregados de Orson Welles, com referência, en passant, a Cecil B. De Mille, o pai dos monumentais épicos da era de ouro de Hollywood.
A Fay a que se refere quando procura uma actriz para substituir a protagonista é Fay Wray, que fez o papel de Ann Darrow no filme original, e filme que se diz estar a fazer para a RKO é o próprio King Kong de 1933 (este é feito pela Universal).
No filme original há uma cena em que o capitão fala com Ann sobre o inconveniente de ter mulheres a bordo. No filme de Jackson, a cena é repescada para o filme dentro do filme, e é realizada por Carl Denham no barco, ainda em viagem.
E a minha preferida: o livro que o jovem grumete anda sempre a ler, "para se instruir", é Coração das Trevas, de Joseph Conrad, o livro que serviu de inspração a Apocalypse Now, e que trata de uma viagem pelo rio Congo acima, à procura de um louco (o monstro), e a caminho da loucura.
Apropriado, mais do que apropriado.

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